quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

REPARTIÇÃO













Humanos/desumanos:





Meus numerosos e fiéis leitores abordaram-me, quando comprava víveres na casa de aves, chamada (ironicamente) Liberdade, para o meu casal de idosos periquitos australianos Béria e Gomulga.

Mesmo de óculos escuros, lenço nos cabelos, após a retirada do capacete finlandês dourado, calça e casaco de couro e botas pretas italianas, fui reconhecida. Vestia-me assim, pois saí de moto KZZR 1400 (305 km/h), e cheguei, antes de imaginar de ter chegado!...

Concluí que, quanto mais me disfarço, para fugir dos intermináveis fanáticos admiradores, mais fácil ser reconhecida... da próxima vez vou de Lady Godiva em cima de um corcel branco, talvez assim não me reconheçam...

Mas, os pedidos já se repetiam ad nauseam (!), que após pagar no caixa e ter que dar dezenas de autógrafos, reuni o público, que me pedia para contar a aventura na repartição publica, de nossa heróica e invicta cidade.

Por uma coincidência, ou não, os inúmeros pássaros presos da Liberdade, calaram-se. Fecharam o bico, após o conhecido gerente ter pedido silencio. Intrigou-me tal fato...

Todos se acomodaram na Liberdade, da melhor maneira possível e dei início a surreal narrativa:

“-Meus queridos (suspiros da platéia): Ontem fui à repartição, onde agendei previamente, para entrega de uns papéis, documentos estes, que iriam resolver um problema pendente.

Ao chegar lá, na referida repartição, após ter saltado da minha limusine azul profundo e o motorista hindu Neruskah di Pitibiribah (Nenê para os íntimos) ter aberto a porta traseira, usando sua costumeira luva branca e seu impecável uniforme de motorista de chapéu. Desejou-me boa sorte, com a usual fineza e educação. O calor da rua estava terrível. Eu usava um vestido solto, compatível com a estação reinante, onde minhas generosas curvas e saliências apeteciam os olhares masculinos. Calçava sandálias, do tipo plataforma, ficando numa altura, acima da média.

Entrei na referida repartição, sentei com um numeroso público, que pude notar socialmente heterogêneo. Quando cruzei as bronzeadas e bem torneadas pernas, instintivamente fui alvo de olhares nada discretos. Como a sala de espera estava refrigerada, acordei aqueles que já se entregavam aos braços de Morfeu, dado ao calor reinante no exterior, ao frio local aconchegante e a demora.

Eu desconfiava que muitos ali ficavam em busca de um refrigério,um sono reparador, um oásis...

Lembrei-me do tio Tacarijuh Carrapatosoh Carapiccuh,(tio Tacah para os íntimos),que em tempos passados, alugou uma fantasia de maestro de banda do interior e num cinismo de uma coragem digna de respeito, apresentou-se á mesma repartição como “marechal de infantaria”. E, pelo pomposo nome e vestimenta, foi atendido prontamente, sem nenhum entrave ou burocracia, e seu problema resolvido. Contam, que o chefe da repartição à época, fez questão que uma viatura pública o levasse em casa.

Internado mais tarde, tio Tacah (para os íntimos) é hoje monge no Himalaia.”

Risos na platéia, que acompanhava solenemente a narrativa. As inúmeras espécies de pássaros pareciam acompanhar o relato, em seus respectivos poleiros, num intrigante silêncio... Prossegui:

-“ Na porta de entrada, um segurança, que lia as senhas ou o número do agendamento, para ver a sua veracidade.

A porta é aberta pelo segurança (só ele poderia fazer isto! soube pelo próprio mais tarde...) e uma senhora sai dizendo impropério para o mesmo, que respondia de modo inaudível.

Súbito, vi o número do meu agendamento na tela.

Levantei-me e dirigi-me à porta, sob olhares de lobos humanos, que salivavam à minha passagem, o segurança abriu à porta, sem tirar os olhos de minhas pernas...

-Mesa número 48W! Ordenou, solenemente.

Sentei-me em frente a um funcionário, que falava ao telefone, numa importância tal, que parecia salvar o planeta... Esperei e coloquei os papéis solicitados em cima da mesa. Ele desligou o telefone e sem me olhar, mecanicamente observou os documentos:

_Não!! Não e não!! Vociferou... A Senhora agendou errado, não é comigo... é na mesa ao lado!...sentenciou.

E, como se fosse uma máquina,abriu o computador e lia em voz alta, o que estava escrito no monitor, como se ele também fizesse parte do sistema virtual,frio,sem nenhum sentimento humano.

Eu,argumentei que o agendamento estava certo e que o item 2469WRT, que ele se referia não constava á época do agendamento. O que ele contestou com veemência:- Mas , a partir de hoje ás 16h 33m consta, como à senhora pode ver!...

-Sim, mas como o seu colega está ao lado , para não perder a viagem, eu lhe rogo,poderia falar com ele?...

Depende dele e do segurança...disse com escárnio.

Agradeci e fui falar com o segurança. Este me ordenou que sentasse e foi falar com o servidor da mesa ao lado.Antes que eu cruzasse as minhas belas pernas, o segurança aproximou-se e disse,como um almirante de esquadra, com a voz taciturna e grave:- Pode falar com ele.

Agradeci. Sentei-me e antes de mostrar os papéis ele, friamente, ordenou:

-"A Senhora vai ter que sair e pegar nova senha."..

Resolvi obedecer e lembrei-me do tio Tacarijuh Carrapatosoh Carapiccuh (Tacah, para os íntimos)

Entrei na fila, aguardei e depois de um longo tempo em pé recebi nova senha.

Esperei sentada e eis que surge o novo número na tela.O zeloso segurança abriu a porta (só ele podia, disse-me formalmente) e sentei em frente à mesa pretendida , a 54Z. Ele juntou os papéis, sem vê-los, sem examiná-los sequer e rasgou (!...) a senha , que lhe dei.E, numa velocidade impressionante, talvez quisesse me ver pelas costas o mais rápido possível, deu-me um protocolo, com uma letra digna de médico com pressa...nem ele entenderia sua própria grafia.

Agradeci e despedi-me formal e militarmente do segurança.

A noite já caia.

Minha limusine azul profundo levou-me até a minha mansão estilo normando, onde uma banheira semi olímpica com sais paquistaneses me aguardava.”

Aplausos foram ouvidos oque acredito,tenham despertados os pássaros anestesiados.

Despedi-me de todos, dei novos autógrafos e antes de subir na minha possante moto KZZR 1400 e ligar o motor, escutei as ínúmeras espécies canoras cantando, numa Babel de sons, e em especial de papagaios /araras:

“-TIOTACAAH!!..-CARAPICCÚÚHH!!...TIOTACAAH!... CARAPICÚUHH!!...

f.a.