terça-feira, 20 de outubro de 2009

AS CONFISSÕES DE TIA BELLA MAMBAH



Humanos/desumanos:


Finalmente!
Após inúmeros e fiéis leitores terem me abordado em vários locais públicos, e eu ter recebido incontáveis correspondências, inclusive do exterior (com predominância da Bessarábia e da Transilvânia, onde tia Bella Mambah nasceu), fui convidada a tomar um chá paquistanês em sua casa, onde o segredo seria revelado...
Foi uma recepção formal e educada, como bem caracteriza o comportamento de tia Bella Mambah (leiam Valores Femininos).
Isto ocorre quando a mesma está sóbria, em seu juízo perfeito, parece uma nobre inglesa, da era Vitoriana. Mas, quando bebe (proibida pelo médico, no alto de seus 89 anos) se comporta de maneira libertina, como de nosso último encontro na residência luxuosa de tia Vyborah (leiam Valores Femininos).
Era uma casa de estilo sóbrio normando. Interiores discretos, com cabeças de animais empalhadas e penduradas, tais como tigre de bengala, javalis africanos, veados neozelandeses, isto numa atmosfera de penumbra, pois tia Bella Mambah, puxou o primo, o tio Leibowyczwy (leiam Silencio, Frio e Escuridão). Móveis antigos e pesados, tapetes persas, piso de madeira de lei, frisos largos onde os passos eram ouvidos à distância (tia Belamambah ofereceu-me pantufas), uma lareira de pedra. Tudo muito limpo.
Era um ambiente maravilhoso, pois tudo funcionava a contento, muito embora muitos achem ser velho demais, decadente até.
A mesa estava posta e reparei que não haviam serviçais.
Ela me disse que assim estaríamos mais á vontade e disse que o marido, tio Zumbyhvivo, chegaria tarde. A tarde desmaiava.
Súbito, notei que em cima da velha mesa de carvalho canadense, algumas garrafas de vodca russa, arenques marinados, pães pretos.
Um samovar de prata russo e biscoitos delicados.
-“É para você, querida, o chá...” disse-me polidamente, enquanto servia a vodca russa, envolta num manto de gelo, para si. ”-Sirva-se à vontade, esteja em casa.”
Agradeci, enquanto servia-me de chá paquistanês.
O silêncio só foi quebrado, pelo barulho da terceira dose de vodca russa em sua taça de cristal tcheco.
Tia Bella Mambah deu início:
-“Você sabe que eu me casei com 89 anos, invicta”! E, riu. -“Foi uma paixão à primeira vista. Seu tio Zumbyhvivo, viúvo de cinco(!) matrimônios, mesma idade, um homem educado, fino, religioso, uma reserva moral. Mas, nas primeiras semanas (e isto já tinha começado na nossa lua de mel em Visconde de Mauá), começou a me pedir coisas, a inventar coisas, que até Deus duvida... No começo, por educação, achava graça, mas depois vi que era engraçado até demais... Ele se vestia de professor e eu de aluna e batia na porta da frente, como se fosse um mestre zangado, eu abria e ele me colocava no colo e me dava reguadas pelo meu mau aproveitamento nas aulas e depois...”.
Tia Bella Mambah ria. “-De outra vez, ele apareceu vestido de Batman e por muito custo, o convenci, a me vestir de mulher morcego e não de Robin, como ele insistia... Também teve a vez em que ele aparecia de médico e eu de enfermeira... Ele de juiz de futebol e eu de bandeirinha...” Tia Bella Mambah já gargalhava sob efeito da vodca russa.
Culminou , quando ele vestido de leão (e, vinha caminhando desde a rua, com uma platéia ávida atrás, até a porta de casa!), fez-me vestir a roupa feminina de um safári africano. Foi tão intenso, que desmaiei no corredor, sendo levada para o pronto socorro, numa ambulância... Acredite, ou não, atrelada ao seu tio Zumbyhvivo!...
-“Seu tio foi passar uns tempos numa casa de repouso, sendo convidado a se retirar por bolinar em todas as enfermeiras.”. Tia Bella Mambah, já completamente alterada, ria e contava aquelas excentricidades, que pude perceber eram já tranqüilas para ela.
“E, agora, ele parou e eu que não quero mais parar!” Disse alto em bom som. “-Não quero! Não quero! Não quero!” E, gargalhava. A garrafa de vodca russa estava vazia. Súbito, um morcego (sim, parecia) entrou na sala com vôos rasantes e alojou-se na moldura do quadro seu tio Nosferatu Dracul. “-Não se preocupe é Naftalinah, nosso bicho de estimação. Ele sai de manhã e volta ao entardecer. Mas, voltando ao assunto, saiba querida sobrinha que eu sinto falta daquelas brincadeiras e o que fazer para o velho continuar?...” E, ria a não poder mais e de repente, caiu numa poltrona, como que desmaiada, pelo cansaço, pela vodca russa. Seu semblante era de calma. Apoiei tia Bella Mambah, delicadamente, em meus braços e vagarosamente, fui até o seu dormitório. Lá, coloquei-a suavemente em sua cama. Ela roncava levemente e de seus finos lábios um fio de líquido, subia e descia, conforme o movimento de sua respiração. Ao deixa-la na cama, tive a surpresa de ver , como um revestimento, em todas as paredes, todos os nus da revista Playboy, desde o seu número 01.As portas eram revestidas de quadrinhos eróticos do Carlos Zéfiro. Contive o riso, para não acorda-la.
Saí pé ante pé, fechei silenciosamente a porta, atravessei a sala, onde o morcego Naftalinah, já pendurado, olhava-me fixamente, bem como a figura pintada do quadro... Lembrou-me o famoso poema de Edgar Allan Poe( O Corvo). Estremeci.
Anoitecia. Ganhei à rua. Resolvi voltar a pé, pois não era muito longe. E, fiquei me perguntando, oque seria do mundo sem pessoas como tia Bella Mambah e suas ditas loucuras. Fiquei pensando e rindo sob uma poeira de estrelas.
f.a.




sábado, 10 de outubro de 2009

OLIMPÍADAS


Humanos/desumanos:

Fiquei feliz.

As Olimpíadas tinham sido iniciadas: um atleta, que passou a sua infância na favela, corria com a tocha olímpica pelo liso e molhado asfalto da cidade, que mostrava sinais de imaculada limpeza. O povo sorridente acenava e aplaudia. Uma chuva muito fina caía, refrescando a todos. As imagens mostravam as favelas pintadas e urbanizadas. Em cada uma delas, conjuntos de árvores davam um tom verdejante, de esperança, ao local. Todas as simples e dignas casas (outrora barracos) pintadas de cores diversas,com bandeirinhas igualmente coloridas, e florezinhas nas sacadas, indicavam o importante evento, com uma bandeira de tamanho maior indicando a escola recém construída.

A cidade tinha se transformado: meios de transporte mais rápidos e confortáveis, sua baía limpa de águas claras, túneis recém abertos, espaços urbanos amplos, confortáveis e seguros. Estacionamentos gigantescos e de fácil acesso. Áreas livres, arborizadas e limpas guardavam carros. Em cada bairro, novos hospitais, bem equipados e competentes.

O trânsito de veículos e pedestres fluía normalmente, sem nenhum problema. Nas vias urbanas não se via um só papel no chão.

A segurança dos habitantes era total.

O povo feliz cantava nas ruas. Era uma nova cidade, a transformação devia-se as Olimpíadas, cujo nome foi dada à comunidade mais carente da cidade, agora provida de educação, saúde, todos os serviços públicos essenciais a uma vida digna.

O nosso humilde e triunfante atleta, molhado de suor, chuva e talvez lágrimas, passou garboso com suas passadas largas e seguras. Via-se nele a redenção de um povo.

Aproximou-se da pira olímpica para colocar a tocha que ardia em suas mãos.

E, ao colocar, ouve-se um estrondo magnífico e ostentoso.

Não chovia mais e um arco íris colorido, deixava-se transpassar pelos fogos da alegria, na expectativa de uma existência melhor.

Acordei, infelizmente.

f.a.