domingo, 4 de maio de 2014

A METAMORFOSE





            
Humanos/desumanos:


Recebi a carta de meu primo Wolodia Górgias (Gogó, para os íntimos), que mostro na íntegra aos meus ávidos, numerosos e fiéis leitores:

“Cara prima Floraalma:

Espero encontrá-la bem/seus. Comunico, com pesar, o falecimento de minha sogra dona Cidinha (Aparecida, nome este em homenagem à Santa Padroeira), aos 94 anos. Alugamos um carro de som, dando detalhes do féretro, para que a cidade saiba e seja avisada deste infortúnio, daquela que foi uma figura conhecida e querida. Prática comum aqui. Ela enviuvou jovem. E, cedo cuidou de seus filhos: 02 homens e uma única filha caçula, que era cercada de cuidados especiais. Dos filhos homens, dona Cidinha não foi muito feliz: um bicheiro, expert em jogos de azar e um político corrupto, sempre eleito. Todos ricos. A filha, superprotegida, foi educada para ser freira, uma irmã de caridade. Dona Cidinha fez de tudo. Em vão. A Justiça falou mais forte e hoje é uma conceituada e competente juíza na cidade.

Mas vamos ao que interessa: dona Cidinha ao casar já era uma religiosa convicta. Entregou-se às práticas religiosas com um enorme fervor: trajava sempre  preto, mostrando seu luto para o mundo, não perdia uma missa, ajudava no que fosse preciso na Igreja,confessava, comungava, etc. Figura imprescindível e fundamental na catedral da cidade. Carregava um terço religioso (presente encomendado de uma amiga que trouxe da Terra Santa) e do mesmo não desgrudava. Dona Cidinha só lia o novo testamento. Jornais, música popular, revistas e principalmente TV dizia:- “Serem obras do demônio, daqueles que não conheciam a palavra do Senhor, perdedores da fé divina, uns extraviados do caminho do bem...”

Apesar de termos tido um respeito mútuo, nossos gostos eram completamente diferentes. Sem falar na religiosidade: diametralmente opostas.Nunca falamos sobre estes delicados assuntos, mas sabíamos o que cada um pensava.

Mas, cara Floraalma, algo vinha acontecendo: Dona Cidinha, já não tinha o livro sagrado junto à cama e sim (pasme!) os meus livros emprestados de filosofia, psicologia, sociologia, clássicos romances, etc. que lia vorazmente. Seus hábitos mudaram: usava um estilo de roupa (batas coloridas, botinhas, brincos, pulseiras, etc.) que não combinaria jamais com suas ideias anteriores. Pintava as unhas de roxo bem como os cabelos da mesma cor. Abandonou o rosário e as idas à Igreja. Uma vez, encontrou-se com o pároco, na praça, que custou a reconhecê-la e surpreso convidou-a a voltar ao convívio religioso, o que a mesma agradeceu e respondeu que estava “numa outra”... Começou a gostar de rock, principalmente de heavy metal... Tinha todos os álbuns de Jimmy Hendrix. Lia  Marx, Sartre e Espinoza, sendo este último seu preferido de cabeceira. No banho (tomava vários ao dia) cantarolava em alto e bom som Raul Seixas, deixando a  vizinhança perplexa. Na festa de fim de ano da neta, recitou com pompa e circunstância seu poeta preferido, Augusto dos Anjos, provocando um silêncio ensurdecedor na plateia ao final do poema Versos Íntimos. E, para culminar com esta Metamorfose, começou a namorar, frequentando bailes funks com o amado, pois fazia aula de dança, afim de “recuperar o tempo perdido”, dizia. A cidade comentava na falta de assunto melhor para a mesma. Seus filhos homens ficaram indignados e revoltados com a idosa senhora.  A filha apoiava.

E, assim ia levando a vida numa boa e já conversava comigo sobre assuntos que tínhamos em comum, mostrando um conhecimento impressionante.

Numa tarde de chuva fina, se sentindo cansada, acendeu um incenso de lavanda (adorava), colocou um CD de Jane Joplin, sentou em sua poltrona preferida, e com sua roupa mais colorida, descansou eternamente. Sem sofrimento. No seu colo, jazia semi- aberto o livro A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues.  Em sua mão direita, encontrou-se o rosário que se imaginava perdido.

Votos de paz e saúde, de seu primo W. Górgias.”

f.a.