Humanos/desumanos:
Acordei
cedo em minha mansão estilo normando, tomei uma ducha finlandesa na casa de banhos
e após um rápido breakfast: pães integrais da Normandia, mel finlandês, queijos
franceses, yogurt bávaro, frutas californianas da estação, etc. preparado pela
fiel governanta Goldawasser, vesti-me. Para ir votar. Obrigatório votar,
conforme leis vigentes. Claro que coloquei a roupa mais discreta e formal possível,
dada à ocasião: nada de decotes, nada de carnes à mostra. Sapatos baixos. Algum
blush, pintura discreta e fomos lá cumprir o nosso dever cívico. Dada à
proximidade da zona eleitoral, dispensei a minha limusine azul profundo e com
ela o meu motorista particular, o paquistanês Neca di Pitibiriba (Piti para os
íntimos). Mesmo assim, no trajeto a pé, cabelos
esvoaçantes chamaram à atenção, como também à minha juvenil, curvilínea e
estonteante beleza. Na calçada inundada e imunda de santinhos, alguns homens
viravam a cabeça (como são tolos!) e escorregavam nos papéis dos candidatos à
minha passagem, causando gargalhadas entre as militâncias rivais, que nas
proximidades faziam um estardalhaço, ferindo os ouvidos. Entrei na escola. As
imensas filas se misturavam de tal forma, que levei algum tempo para descobrir
a minha seção. Entrei na grandiosa fila cívica, que parecia uma sinuosa
serpente, onde a cabeça e o rabo já não se viam. Uma simpática servidora daquela
zona informou-me que aquela fila era de idosos, pessoas com algum problema
físico, gestantes. Algumas pessoas, já algum tempo no local, curiosas,
perguntaram qual foi o cirurgião plástico que operou este milagre, em minha pessoa...
Eu tive vontade de perguntar ao jovem rapaz, atrás de mim, em que mês estava em
sua gravidez... O tempo passava lento e a fila não andava. A demora
justificava-se no fato da biometria.
Ela era a vilã da sofrida espera. Não funcionava após oito tentativas, apesar
de termos dez dedos... Nisso, um odor de salgados é sentido e algumas pessoas
os devoravam, sob meu olhar atônito e surpreso. Uma discussão de política é
iniciada por duas criaturas que quase vão às vias de fato. A verdade estava em
jogo: situação, oposição, voto em branco, voto nulo ou - que é que estou
fazendo aqui? Um dizia que “-aquilo era um absurdo, pois tudo era feito,
inclusive a biometria, com o nosso
suado dinheiro!” O outro retrucava estar ali, -“justamente para tentar
modificar esta situação calamitosa!”... Os dois litigantes sabiam até detalhes
íntimos dos candidatos, inclusive seus antecedentes criminais, amantes, suas
paixões futebolísticas, pratos preferidos... Fiquei estarrecida. Comecei a ter
leves tonteiras. Sentei-me num banco de concreto. Lembrei-me do escrito O ELEITO (31/10/2010). Fechei os olhos
e pensei nos Lagos Andinos. Melhorei. Após duas
horas e meia, uma mesária comendo biscoitos e reclamando de tudo e de todos
me atendeu. Meus oito dedos foram insuficientes... Liberou-se a cabine (ridiculamente
cercada com rotos panos, para sua privacidade) e votei!Aleluia!O país estava
salvo!...
Dado o tempo que fiquei
à mercê da justiça eleitoral, meu segurança Pindoramus Ridicullus (PR para os
íntimos) aguardava-me ansioso. Acompanhou-me até a minha mansão, onde após um
banho de imersão em minha dourada banheira semi-olímpica egípcia com sais turcos
e alguns soníferos, orientados por meu psicoterapeuta austríaco, consegui
dormir. Sonhei com o Inferno de Dante Alighieri em sua Divina Comédia.
Acordei com sol
fulgurante e com uma esperança varonil para o dia.
f.a.