quarta-feira, 23 de março de 2011

O COVEIRO





Humanos/desumanos:


Fui acordada alta madrugada por manifestaçôes de pessoas, que em coro uníssono bradavam: Conta! Conta!...Pensei tratar-se de contas no exterior. Interessei-me. Saltei rápida de minha cama faraônica egípcia e tentando esconder meu corpo bronzeado, curvilíneo e lânguido de olhares externos. Fiquei atrás da cortina de seda tailandesa. Era mais uma daquelas manifestações populares que não se pode fugir. Coloquei um peignoir húngaro, dei um jeito nos revoltos e sedosos cabelos, calcei sandálias douradas italianas e pus-me na sacada de minha mansão estilo normando. Alguns seguranças e motoristas acordaram com o ruído. Minha fiel governanta Goldawasser devia estar roncando, pois a mesma come alho, cebola e arenques marinados à noite, provocando um sono profundo, talvez só acordando pelas conseqüências que aquela dieta noturna é capaz de provocar... A noite estava magnífica. Com a minha presença, fez-se silencio. Pude perceber à distância uma faixa escrita: O COVEIRO! Entendi. Saudei aos manifestantes e sentei em minha long chaise dinamarquesa, Todos se acomodaram, com o devido cuidado, em meu jardim estilo Versalhes( Luis 15). Sob os olhares de alguns discretos e educados seguranças indianos e as estrelas, dei início: “ Meu primo, filho único, nascido na Moldava, não se interessava por nada. Era uma criança estranha, comparada às demais. Não conheceu o pai, que sumiu, dizem que foi tragado pela terra, quando estava num bunker, na primeira grande guerra. Chama-se Drekul. Drekinho para os íntimos. Franzino, muito branco ,falava pouco, quase nada. Dizem que só começou a se comunicar com as pessoas aos quatro anos. Gostava de enterrar os bichinhos que ia encontrando pelo caminho. Só brincava disto. Desenhava caixas para enterrar os mais variados animais de pequeno porte. Dizia minha tia Zoffer-íqueques, sua genitora, que ele tinha um pacto com o demo. Pouco estudou e se interessou. Terminou somente o fundamental. Sabia ler e escrever, que para ele bastava. Foi crescendo desta maneira um tanto bizarra. Sem amigos.Sempre calado. Nenhuma namorada. Ela ia crescendo junto à zelosa mãe. Um dia chegou a casa e comunicou formal e laconicamente à mãe que tinha conseguido um emprego, o de coveiro. Esta escutou e nada comentou, pois uma ajuda financeira seria bem vinda aquele lar paupérrimo.” O silencio reinante só era interrompido pelos grilos, que mandei buscar na Geórgia, os mais coloridos e cantantes. Alguns entoam até blues. Continuando: “Drekul(Drekinho, para os íntimos) aprendeu rapidamente a profissão. Vestia-se de negro da cabeça aos pés. Solitário e falando o mínimo possível, quando necessário. Escavava, escorregava e enterrava o corpo com exímia maestria. Ao enterrar o corpo, balbuciava sozinho( os outros pensavam que se tratava de uma oração): -... “Morrer é a única coisa inevitável, certa.” Era solidário, ajudando a enfeitar o caixão com flores, sem conhecer o morto. E, durante o enterro, chorava como se conhecesse o defunto, como se fosse íntimo do cadáver. Quando o corpo era seu conhecido, solicitava dispensa do trabalho, alegando alguma enfermidade. Uma vez, desmaiou ao descobrir que o corpo que jazia era de sua professora primária. Quase caiu junto, na cova aberta, sendo salvo pelo ajudante e convidados. O tempo foi passando e os diretores viam em Drekinho um servidor que se emocionava com os enterrados, fazendo um forte elo de solidariedade com os parentes e amigos do(a) finado(a), daí o fato, que jamais pensaram em despedi-lo. Pois suas lágrimas, pequenos e discretos gemidos davam pompa e circunstância ao enterro. Tamanho sucesso pelos féretros que Drekinho tornou-se uma figura tão popular, que hoje faz o comercial de uma multinacional de lenço de papel, para ocasiões onde as lágrimas são inevitáveis. Está rico. Gosta do que faz. Quanto mais chora e sofre mais rico fica. Seu livro: COMO VENCER NA VIDA CHORANDO, está na 24ª. edição, traduzido até para o esperanto. Seu grande incentivador é o tio Leibowyczwy (leiam Silencio, Frio e Escuridão). Conta-se que vende semens para reprodução, acreditando-se que outros coveiros nascerão com aquelas características. Sua mãe faz 104 anos este mês. Todos estão ansiosos de qual será seu comportamento quando ela se for. Ela fez tanta plástica para manter perene a juventude, que quando vai a um enterro, explica com certo constrangimento:-" que não está rindo, são as plásticas no corpo..." E, aí está a história de um vitorioso!”

Antes de receber uma ovação, que poderia acordar a cidade, com certeza, pedi a distinta platéia, dado ao adiantado da hora, que não aplaudisse. Fui atendida. Recebi um grupo, solicitando que intercedesse junto ao primo Drekinho, para que enviasse o mais rápido possível quantidade de seu sêmen para possíveis pretendentes. Vendemos toda a quantidade de seu livro, para a ávida platéia. A minha comissão da venda, doei para a futura ABRASUCU(Associação Brasileira Superior dos Coveiros Urbanos), que recebi em minha sala estilo etrusco, onde servi um rápido coquetel.

f.a.