quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O ASSALTO E A GREVE



Humanos/desumanos:

Eu estava envolvida com a greve da minha criadagem.

Sim, porque todos têm o direito à dita cuja, embora eu já tivesse preparado todos os procedimentos legais, tais como contratado advogados suíços para tratar do caso, etc.etc. E, a mesma certamente seria considerada ilegal.

Quando acordei naquele dia , me dei conta que estava irremediavelmente perdida!

Pois estava sem a minha governanta polaca Goldawasser, sem o mordomo paquistanês Khulay, sem a cozinheira húngara Byllah, sem o garçom nórdico Yohanshenn, sem o jardineiro paraibano Zélais e sem o motorista indiano Neruskah di Petibiribah (Nenê, para os íntimos). Este sim, fazia muita falta, pois com a nossa limusine presidencial poderíamos arrebanhar a criadagem.

Mas, foram insolúveis os argumentos, para que voltassem à labuta.

Não sabia, qual seria o motivo deste motim trabalhista, pois sempre paguei bem aos serviçais: todos os direitos trabalhistas, semana de 03 dias semanais, férias no Caribe/Patagônia/Colorado/Alpes, etc, a escolher, com direito á passagem de avião na primeira classe com acompanhante,ida e volta, recesso duas vezes ao ano de 04 meses, alguns ganhavam travellers euro, seguro saúde perene, quando completassem 04 anos de casa, aposentadoria perene, também ,pelos 04 anos de casa e proporcionais, extensivo aos parentes, nepotismo, etc., além de uma mordomia digna, etc.etc, parecendo até o ...deixa prá lá...

Uma reunião foi marcada na casa do motorista indiano Neruskah di Petibiribah (Nenê, para os íntimos).

Mas, neste interregno (que palavra!), tive que me virar sozinha.

Pequei um frescão, sim porque neste calor senegalês, é impossível suportá-lo, dando até para fritar um ovo na calçada.

Fui à busca do motorista indiano Neruskah di Petibiribah (Nenê, para os íntimos).

Sentei nos fundos do ônibus, que estava quase cheio.

Estava entretida com meus pensamentos e escutava no celular As 4 Estações de Vivaldi,com máscara nos olhos para aplacar a claridade. Quando abri os olhos e vi que um rapaz, de aparência humilde falava, na frente do ônibus. Tirei o fone do ouvido, para escutá-lo: -“Senhoras e Senhores, boa tarde: desculpe atrapalhar a boa viagem de vocês... eu poderia estar aqui como assaltante e estou pedindo para me ajudar,pois tenho seis filho, sogra doente, estou desempregado, para comprar este saco com vinte unidade das deliciosa mariola Boas Vida! Um saco é dois real, três sacos é cinco real. Alguém se habilita? Quem vai?...”.

Nisto, começou a colocar o saco das deliciosas mariolas Boas Vidas nos colos dos passageiros, numa velocidade invejável. Eu é claro, balancei a cabeça negativamente, agradecendo. O ônibus seguia seu fluxo normal. Ao recolher todos os pacotes de mariola, pois infelizmente, ninguém comprou, o vendedor subitamente sacou de um revólver cano longo e dispara:- “Olha aqui gente boa, vai botando as carteira, relógio, etc. que eu vou recolhendo... e se alguém chiar... sei não... o berro...berra!!” E, gritava, na medida que ia assaltando:-" Perdeu!...Perdeu!... Perdeu!"...

A mulher à minha frente, começou a soluçar. Eu de minha parte , olhava para fora,na janela, fingindo indiferença, como se nada tivesse acontecendo e a vista fosse dos Alpes suíços... Na frente do ônibus, junto ao motorista, outros, também armados, conversavam com o mesmo e assustavam os passageiros próximos. Mas notei ,que um clima de conversa informal já se instalara, quando para quebrar essa sensação, o vendedor estala um tapa na bochecha da mulher que soluçava alto, de medo...

O silencio agora era insuportável.

Eu tinha perdido o meu celular made in China e o relógio o assaltante tinha achado “mixuruca”, que mais tarde viria, a saber, o que significava esta palavra e o "berro"... Aliás nunca vi cano de "berro" mais longo...

Depois de terem feito o roubo , saltaram lépidos do transporte de massa refrigerado, assobiando , deixando um pacote de mariolas Boas Vidas ao assustado motorista.

Todos fomos à Delegacia Policial e demos queixa, com todas as formalidades.

Achei uma aventura emocionante!...

Mas o meu problema, persistia. E, como a delegacia ficava, felizmente, perto da residência de meu motorista indiano Neruskah di Petibiribah (Nenê, para os íntimos), que me aguardava, tomando chá indiano e fumando narguilé em sua espaçosa varanda, cercada de verde. Junto, pude ver todos os meus serviçais presentes.

Nenê pediu a palavra e com um leve nervosismo, olhando nos meus olhos (aquele olhar me sufocou...) disse com suavidade:- “Senhora Floraalma, nós estamos muito satisfeitos com a senhora, nada a reclamar (e, não podemos, frisou) é... que... gostaríamos de pedir a senhora que nos tirasse estas vantagens (passagens, viagens, mordomias,nepotismo, etc.etc.), bem como o alto salário que nós recebemos. Queremos receber os nossos direitos com dignidade, sem ferir aqueles que recebem bem menos!”. E, finalizou: "-Estamos fundando a Comissão Utópica Sindical Operária Doméstica (CUSOD) e convidamos a senhora a ser nossa presidente de honra." Dito isto tragou o seu narguilé, sob aplausos dos meus fiéis serviçais.

Eu não estava acreditando!.. O meu advogado suíço desmaiou e precisou de sais para acordar.

No dia sequinte tudo voltou à normalidade e recebi a notícia que meu celular made in China fora encontrado. Dei de presente ao agora calmo e sorridente motorista do ônibus frescão, que me convidou a entrar gratuitamente e eu declinei, agradecendo.

Atravessei à rua e peguei a minha azul profundo e blindada limusine refrigerada presidencial, onde o motorista indiano Neruskah di Petibiribah (Nenê, para os íntimos), vestido a caráter e de luvas brancas, abriu solenemente a porta traseira para mim.

f.a.


7 comentários:

  1. Prezada Flora
    Tenho acompanhado seus posts e aprendido a admirar a sinceridade com que expõe as peculiaridades de sua família, mas sou obrigado a confessar que este último relato parece ter inspiração kafkaniana, ao menos para os padrões de nosso país.
    Não pare.

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  2. Querido Anônimo:
    Realmente, o que acontece neste país é tão surealista-kafkaniano(os fatos diários, provam por si mesmos), que inspirei-me, ao contrário, é claro...
    Agradeço as gentis palavras, meu assíduo e estimado leitor.
    abs.
    f.a.

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  3. Quem me dera se tivesse uma patroa que nem você Flora... seria maravilhoso, mas a realiadade nos mostra outra coisaaaa.

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  4. Querida Gabi:
    Quem sou eu, pobre de mim, para ser sua patroa...seria um sonho...
    sempre sua,
    f.a.

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