Humanos/desumanos:
Recebi a
carta de meu primo Wolodia Górgias (Gogó, para os íntimos), que mostro na
íntegra aos meus ávidos, numerosos e fiéis leitores:
“Cara prima Floraalma:
Espero encontrá-la bem/seus. Comunico,
com pesar, o falecimento de minha sogra dona Cidinha (Aparecida, nome este em
homenagem à Santa Padroeira), aos 94 anos. Alugamos um carro de som, dando
detalhes do féretro, para que a cidade saiba e seja avisada deste infortúnio, daquela que foi uma figura conhecida e querida. Prática comum aqui. Ela enviuvou jovem.
E, cedo cuidou de seus filhos: 02 homens e uma única filha caçula, que era
cercada de cuidados especiais. Dos filhos homens, dona Cidinha não foi muito feliz:
um bicheiro, expert em jogos de azar e um político corrupto, sempre eleito. Todos
ricos. A filha, superprotegida, foi educada para ser freira, uma irmã de
caridade. Dona Cidinha fez de tudo. Em vão. A Justiça falou mais forte e hoje é
uma conceituada e competente juíza na cidade.
Mas vamos ao que interessa:
dona Cidinha ao casar já era uma religiosa convicta. Entregou-se às práticas
religiosas com um enorme fervor: trajava sempre preto, mostrando seu luto
para o mundo, não perdia uma missa, ajudava no que fosse preciso na Igreja,confessava,
comungava, etc. Figura imprescindível e fundamental na catedral da cidade.
Carregava um terço religioso (presente encomendado de uma amiga que trouxe da
Terra Santa) e do mesmo não desgrudava. Dona Cidinha só lia o novo testamento.
Jornais, música popular, revistas e principalmente TV dizia:- “Serem obras do
demônio, daqueles que não conheciam a palavra do Senhor, perdedores da fé divina,
uns extraviados do caminho do bem...”
Apesar de termos tido um
respeito mútuo, nossos gostos eram completamente diferentes. Sem falar na
religiosidade: diametralmente opostas.Nunca falamos sobre estes delicados
assuntos, mas sabíamos o que cada um pensava.
Mas, cara Floraalma, algo
vinha acontecendo: Dona Cidinha, já não tinha o livro sagrado junto à cama e
sim (pasme!) os meus livros emprestados de filosofia, psicologia, sociologia,
clássicos romances, etc. que lia vorazmente. Seus hábitos mudaram: usava um
estilo de roupa (batas coloridas, botinhas, brincos, pulseiras, etc.) que não combinaria
jamais com suas ideias anteriores. Pintava as unhas de roxo bem como os cabelos
da mesma cor. Abandonou o rosário e as idas à Igreja. Uma vez, encontrou-se com
o pároco, na praça, que custou a reconhecê-la e surpreso convidou-a a voltar ao
convívio religioso, o que a mesma agradeceu e respondeu que estava “numa outra”...
Começou a gostar de rock, principalmente de heavy metal... Tinha todos os
álbuns de Jimmy Hendrix. Lia Marx, Sartre e Espinoza, sendo este
último seu preferido de cabeceira. No banho (tomava vários ao dia) cantarolava
em alto e bom som Raul Seixas, deixando a vizinhança perplexa. Na festa de
fim de ano da neta, recitou com pompa e circunstância seu poeta preferido,
Augusto dos Anjos, provocando um silêncio ensurdecedor na plateia ao final do
poema Versos Íntimos. E, para culminar com esta Metamorfose, começou a namorar, frequentando bailes funks com o amado, pois fazia aula de dança, afim de
“recuperar o tempo perdido”, dizia. A cidade comentava na falta de assunto
melhor para a mesma. Seus filhos homens ficaram indignados e revoltados com a idosa senhora. A filha apoiava.
E, assim ia levando a vida
numa boa e já conversava comigo sobre assuntos que tínhamos em comum, mostrando
um conhecimento impressionante.
Numa tarde de chuva fina, se
sentindo cansada, acendeu um incenso de lavanda (adorava), colocou um CD de
Jane Joplin, sentou em sua poltrona preferida, e com sua roupa mais colorida, descansou
eternamente. Sem sofrimento. No seu colo, jazia semi- aberto o livro A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues. Em sua
mão direita, encontrou-se o rosário que se imaginava perdido.
Votos de paz e saúde, de seu
primo W. Górgias.”
f.a.
F.A. Esse seu primo Gogó tem parentesco com seu tio Putin?
ResponderExcluirAmado Luiz Augusto:
ResponderExcluirSim!
Abs. Sempre sua;
f.a.
Que bela história, bem rodriguiana!
ResponderExcluirQuerido Lucio Lopes:
ResponderExcluirGrata por suas generosas palavras. Caso se interesse leia outras postagens.
Sempre sua;
f.a.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirLinda história!
ResponderExcluirBom que ela pôde ter vivenciado os dois "mundos'.
luciana - Paulo Cesar
Queridos Luciana- Paulo Cesar:
ResponderExcluirAgradeço às generosas palavras.
Claro!
sempre sua;
f.a.
Cara Flora Alma, não encontrei sua mensagem à namorada. Dê-me a trilha.
ResponderExcluirApreço-abraço: Iterbio Aldrighi
e-mail:iterbioaldrighi@gmaail.com
caro iterbio:
Excluirestá no www.emcomendola.blogspot.com
sempre sua;
fa
Cara Flora Alma, de todas as suas palavras que me encantam e divertem, essa metamorfose descrita na carta com toda certeza me fascina. Escreva mais! Suas histórias alegram os meus dias, um abraço de sua mais nova e fiel leitora, Iris.
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